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sexta-feira, 20 de abril de 2012

Ecologia, a fraude do nosso tempo

O movimento ecológico constitui hoje um dos mais sérios obstáculos nas lutas sociais. Por João Bernardo


No artigo Agroecologia e a luta campesina: continuando o debate JG não retoma por sua conta as teses do artigo de Mix Será o camponês um mito? e desenvolve a argumentação num plano mais racional, como aliás já o havia feito num dos comentários ao meu artigo Sociedade urbana e industrial. Uma resposta. Não se trata portanto de continuar o debate, como JG pretende, mas de o recomeçar.
Mas será que a isto se pode chamar debate? Algumas das principais teses que defendi na série O mito da natureza nem sequer foram consideradas e o artigo de Mix falhou grande parte dos alvos. Na minha réplica ao artigo de Mix apresentei uma sequência de argumentos que na sua maioria não foram discutidos. Os leitores que usaram os comentários para tecer críticas à ecologia e à agroecologia também praticamente não tiveram respostas fundamentadas e um leitor que pacientemente indicou links para resenhas e artigos científicos que põem em causa os mitos da agroecologia e da alimentação chamada orgânica não viu nenhum desses links ser contestado.
Esta fuga ao debate não espanta. O presidente da Associação Brasileira de Agroecologia afirmou em Dezembro de 2011, no discurso de boas vindas ao VII Congresso Brasileiro de Agroecologia, que «em Ciência não há neutralidade. Os valores e a visão de mundo do pesquisador condicionam sua atividade, desde a decisão sobre o que pesquisar ou como e com quem formula suas perguntas de pesquisa. Ao pesquisarmos, o fazemos, consciente ou inconscientemente, a partir do desenho de uma sociedade que imaginamos estar contribuindo para construir. Logicamente, é uma decisão carregada de valores, de ideologia. É nesse sentido que é falsa a afirmação da neutralidade da ciência, mesmo quando ela tenta se amparar no argumento da “aplicação tecnológica inadequada” do conhecimento científico supostamente “gerado de forma adequada”». O presidente da Associação Brasileira de Agroecologia disse também «que a ciência é um campo em disputa e que a consolidação da Agroecologia representa uma revolução paradigmática. Pelo fato de estarmos desafiando velhos paradigmas, os que aderem a esta nova comunidade e a este novo campo passam a ser alvo de críticas e menosprezo nos ambientes em que a ciência convencional continua a ser praticada e no meio político ecotecnocrático que procura se legitimar com os conhecimentos produzidos naqueles espaços».
Não é por acaso que nesta hostilidade àquilo que o presidente da Associação Brasileira de Agroecologia classificou como «ciência normal» e «ciência convencional», um historiador encontra uma grande semelhança com os argumentos que levaram os seguidores de Hitler a defender a Física Ariana ou os seguidores de Stalin a defender a genética de Lyssenko. É certo que todas as noções, científicas ou outras, reflectem a época em que surgiram e o meio social que as originou, mas é um atroz simplismo pensar que assim se possa negar a validade de tudo com que não se esteja de acordo. A ciência fundamenta-se em experiências laboratoriais e numa eficácia prática que serve de confirmação às suas descobertas, e a alteração de paradigmas não invalida estas descobertas. Quando se passa de um modelo explicativo para outro os resultados científicos obtidos no modelo anterior não perdem a validade, mas são inseridos na nova estrutura, onde eventualmente são interpretados noutra perspectiva e podem suscitar novos desenvolvimentos. É assim que, pelo menos desde Galileu, se têm processado os avanços na ciência.
Mas a agroecologia coloca-se fora de qualquer debate científico ao considerar globalmente suspeitos os cientistas que se lhe opõem, precisamente pelo facto de se lhe oporem. Se «como e com quem» forem formuladas as «perguntas de pesquisa» pertencer a uma «visão de mundo» que não seja do agrado dos agroecologistas, eles rejeitam as perguntas, ou seja, fogem às questões inconvenientes. É a legitimação do charlatanismo. Vemos hoje proliferarem nas universidades departamentos dedicados à ecologia, pela simples razão de que os ecologistas são incapazes de defender as suas doutrinas nos departamentos comuns, perante os colegas cientistas. Nos seus departamentos próprios os ecologistas sentem-se protegidos — burocraticamente protegidos — e podem lançar-se na caça às bruxas contra o resto das universidades e dos institutos.
lygia-pape-2Desde há muitos anos que me interesso pela crítica à ecologia e tenho observado que a esmagadora maioria dos ecológicos é indiferente às lições da história económica e quando lhe fazem referência raramente conhecem o que tratam. Não espanta, porque a história económica põe em causa os mitos tradicionalistas e arcaizantes. O artigo de JG não constitui excepção, quando refere que a revolução do neolítico, que ele reduz ao «surgimento da agricultura em sua forma mais rudimentar», «possibilitou o crescimento exponencial da população humana e o estabelecimento das primeiras cidades, cujos moradores se dedicavam a outros empenhos que não produzir ou buscar sua comida, já que havia sobressalente».
lygia-clark-3Ora, o «crescimento exponencial da população humana» só foi tornado possível pelo capitalismo industrial, através de um duplo processo: a introdução de condições sanitárias nas cidades e a aplicação da industrialização à produção de alimentos. Se tomarmos como exemplo a Itália centro-setentrional no final da Idade Média, 95% da população habitava nas áreas rurais e 5% nas cidades, no máximo. E note-se que esta era a zona com maior concentração urbana na Europa da época. Além disso, é necessário saber que existia também nas cidades medievais uma população sazonalmente flutuante, que ia para o campo na época das grandes fainas e regressava à cidade para ganhar uns míseros tostões como serventes ou auxiliares no artesanato. Existia igualmente uma população residente na cidade mas que trabalhava nos campos das imediações. E as cidades não eram todas preenchidas por edifícios, encontrando-se hortas, pomares e outros terrenos agrícolas dentro das muralhas. Só o capitalismo industrial permitiu inverter aquela relação para 5% de rurais e 95% de urbanos; e hoje, nos países que além de serem os mais industrializados são também grandes produtores de alimentos, a percentagem de força de trabalho dedicada à agricultura é mais baixa ainda. A industrialização da produção agrícola e a aplicação da ciência química — agora também da biologia e da genética — à agricultura permitiu que um número diminuto de trabalhadores produzisse alimentos suficientes para uma população cada vez mais abundante, que pôde dedicar-se a outras actividades. Criou-se assim a sociedade urbana e industrial e ampliaram-se enormemente os horizontes da humanidade.
Mas os ecológicos vêem com muito maus olhos a aplicação da química à agricultura e bradam contra aquilo a que chamam agrotóxicos e venenos. Parecem ignorar que os mesmos laboratórios científicos que criaram as substâncias químicas da agricultura industrializada observam os seus efeitos nos seres vivos e no ambiente e continuamente as modificam ou criam outras novas, mais eficazes, que eliminam ou reduzem os efeitos nocivos. E isto ocorre não contra o capitalismo nem fora do capitalismo, mas dentro do âmbito da R&D financiada ou orientada pelo capital. É curioso que o facto de o próprio capitalismo detectar o carácter nocivo de muitos produtos, proibir ou restringir a sua utilização e os remodelar não leva os ecológicos a concluir que o capitalismo dispõe de alguns mecanismos auto-reguladores eficazes.
Com o progresso da ciência vai-se descobrindo que são tóxicas coisas que antes se julgava que não eram, e isto sucede tanto para a sociedade urbana moderna como para a rural arcaica. Sabe-se hoje que panelas de cobre e louça de barro vidrado, por exemplo, que foram durante alguns séculos artefactos comuns na Europa, são muitíssimo prejudiciais à saúde, no caso das panelas pela ingestão do metal e no caso da louça devido às rachas abertas no vidrado. Igualmente nocivos são os talheres e pratos de madeira, que constituíram a única baixela dos camponeses europeus ao longo de muitos séculos. Foram necessários os laboratórios científicos para chegar a estas conclusões.
Os ecológicos são incapazes de demonstrar que os chamados agrotóxicos envenenam a população. JG invoca a este respeito a distinção entre coeficiente de correlação e relação causal, bem conhecida de qualquer aluno de graduação em Economia, mas este aspecto metodológico em nada sustenta as pretensões dos ecológicos, pois seria impossível que a população mundial ingerisse doses crescentes de venenos e apesar disto se multiplicasse e a sua esperança de vida não deixasse de se prolongar. Aliás, quanto à forma incriteriosa como os ecológicos usam as estatísticas remeto para o livro indispensável de Bjørn Lomborg, The Skeptical Environmentalist. Measuring the Real State of the World (Cambridge: Cambridge University Press, 2001), do qual creio que existe uma tradução no Brasil.
terry-haggerty-3Na crítica ao que consideram agrotóxicos, os ecológicos confundem ainda os eventuais efeitos dessas substâncias nos alimentos com o efeito que certos produtos químicos usados na agricultura industrializada podem provocar nos trabalhadores. Mas esta é uma questão que se insere na rubrica dos acidentes de trabalho, extensiva a todos os ramos de produção no capitalismo. Só a luta organizada dos trabalhadores, dentro das empresas, criando comissões de fiscalização, e no âmbito social mais vasto, impondo uma legislação de garantias e seguros de acidentes de trabalho, pode fazer com que as administrações das empresas sofram mais prejuízos deixando adoecer e morrer os trabalhadores do que poupando-lhes a saúde. Este não é um problema específico da agricultura industrializada e sim um problema genérico de todo o capitalismo. Os ecológicos, no entanto, pouco reflectem sobre os acidentes de trabalho na indústria e nos serviços, já que pouco se preocupam com a organização do trabalho nesses ramos.
Fazendo de conta que não leu os comentários de Ronan e de Manolo ao artigo de Mix, onde estão descritas as condições de vida no campo por pessoas que as viveram — ou talvez não os tivesse lido mesmo — JG lamenta que «nós citadinos também perdemos algumas coisas ao não estarmos próximos à natureza e afastados de algumas condições das grandes cidades», e indica exemplos típicos de alguém em férias que vai tomar banho na cachoeira enquanto ouve cantar os passarinhos. A candura de JG não tem limites quando narra: «Lembro-me de uma família de militantes do MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens] que me hospedou em um estágio de vivência. Os pais haviam lutado por vários anos em ocupações para pressionar o governo a reassentá-los após sua terra ter sido inundada na construção de uma hidrelétrica e eles conquistaram um assentamento onde levavam uma vida que me parecia bastante agradável. Seus filhos, porém, tinham como sonho ir viver na cidade; soube recentemente que o filho mais velho se mudou para tentar ser jogador de futebol. A situação é comum nos movimentos da Via Campesina, que busca evitar que todos os jovens abandonem o campo, sendo a própria militância um dos fatores para a permanência de muitos».
Os «estágios de vivência» são uma forma de turismo ecológico que só se distingue daquele que é organizado por certas firmas turísticas francesas pelo facto de evocar o pretexto da militância, embora talvez nem sequer por isto, já que também essas firmas recorrem à ideologia para angariar clientes. E JG, o mesmo que gosta dos banhos de cachoeira e do canto das avezinhas e que acha «bastante agradável» a vida no assentamento, não extrai a lição de um facto elementar, o de os jovens desses assentamentos terem «como sonho ir viver na cidade».
bridget-riley-1Ora, esse sonho é tão forte que a Via Campesina «busca evitar que todos os jovens abandonem o campo». A respeito deste desejo de inverter o fluxo demográfico, que deixaria de se dirigir para as cidades e passaria a dirigir-se para o campo, eu tenho aconselhado os ecológicos — sem qualquer êxito — a estudarem a experiência dos Khmers Vermelhos no Cambodja. Acrescento agora que também é elucidativa a experiência do governo de Ceauşescu na Roménia. Só nestes termos comparativos é que podem medir-se as utopias à luz das realidades e avaliar as implicações da proposta de fixação rural apresentada pela Via Campesina.
Fico perplexo quando JG restringe a agricultura industrial à produção de cereais e de matérias-primas não alimentares e afirma: «Aqueles que porventura gostem ou achem importante comer a diversidade de frutas, verduras e legumes existentes, necessitam hoje da agricultura familiar». Será que realmente JG desconhece a industrialização operada nestes ramos através do uso de agentes químicos, de novos sistemas de irrigação, de enormes estufas e de modificações genéticas? Será possível que o ignore? Essa industrialização conseguiu conferir uma tão alta produtividade à produção de frutas, legumes e verduras que elas podem ser exportadas de um para outro lado do mundo com preços tão competitivos que liquidam as produções familiares autóctones.
Pressionada por um lado pela industrialização da produção agrícola nas culturas extensivas e pressionada por outro lado pela industrialização das culturas intensivas de frutas, legumes e verduras, a agricultura familiar só consegue subsistir em condições de mais-valia absoluta. Tal como sucede nas demais modalidades de economia doméstica, na agricultura familiar os membros da família não contabilizam o seu próprio esforço como custo, fornecendo assim um montante colossal de horas de trabalho gratuitas. Acerca deste assunto, remeto para o meu livro Economia dos Conflitos Sociais. Não o tenho agora comigo nem na edição Cortez nem na edição Expressão Popular, mas na versão que se encontra facilmente na internet as passagens relevantes estão sobretudo nas págs. 117-121 e 132-138. É nestes termos que eu apresento o aspecto económico da questão, e quem estiver interessado em criticar-me sabendo o que critica deve ler aquelas páginas. Se for só para me insultar, é desnecessário ler o que quer que seja.
A escassa produtividade da agricultura familiar é ingenuamente confirmada por JG quando indica, referindo-se ao Brasil, que «embora ocupe apenas 24,3% da área utilizada na agricultura, […] ela emprega mais de 70% dos trabalhadores rurais». Pois é, muita gente activa em pouco espaço é o que se chama fraca produtividade. Mas vejamos os números com maior detalhe.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, o Censo Agropecuário de 2006 avaliou, em quilogramas por hectare, a produtividade nos estabelecimentos familiares e não familiares, conforme consta da tabela seguinte.
ProdutoFamiliar (A)Não Familiar (B)B/A
Feijões (preto, cor e fradinho)6181.1511,86
Arroz2.7415.0301,84
Milho3.0294.3031,42
Cafés (arábica e robusta)1.1791.5821,34
Mandioca5.7707.5411,31
Trigo1.4801.8221,23
Soja2.3652.6511,12
Fonte: Caio Galvão de França, Mauro Eduardo Del Grossi e Vicente P. M. de Azevedo Marques, O Censo Agropecuário 2006 e a Agricultura Familiar no Brasil, pág.20.
Depois vêm dizer-me que a agricultura familiar é produtiva! E menos produtiva ainda é se a questão for avaliada, como deve ser, em função do número de trabalhadores. O Censo Agropecuário de 2006 revelou que no Brasil os estabelecimentos de agricultura familiar representavam 84,4% do total e preenchiam 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários, significando isto que 74,4% da força de trabalho ocupada na agropecuária laborava em estabelecimentos familiares. Ou seja, 3/4 da mão-de-obra laborava em 1/4 da área trabalhada. Ainda de acordo com o referido Censo, no Brasil existiam em média 6,2 pessoas ocupadas por cada 100 hectares de terra aproveitável para lavoura e pecuária; ora, nos estabelecimentos familiares esta média subia para 17,9 pessoas por 100 hectares, enquanto se reduzia a 2,1 pessoas por 100 hectares nos estabelecimentos não familiares.
terry-haggerty-2Tudo isto indica a baixa produtividade da agricultura familiar, tanto medida em volume de produto por área como em número de trabalhadores por área. Precisamente porque se trata de uma modalidade pouco produtiva é que a agricultura familiar requer um grande número de horas de trabalho. Segundo o Censo Agropecuário de 2006, do total de pessoas ocupadas neste tipo de agricultura, 89,4% tinham laços de parentesco com o cabeça de exploração; e como em todas as formas de economia doméstica os membros da família não contabilizam o seu próprio trabalho como um custo, o número médio de horas de trabalho por pessoa activa na agricultura familiar é necessariamente superior ao da agricultura não familiar. O referido Censo fornece a este respeito uma indicação muito significativa, ao revelar que 7,4% da força de trabalho ocupada nos estabelecimentos familiares era composta por crianças e adolescentes, enquanto nos estabelecimentos não familiares essa percentagem se reduzia a 3,6%. São estas as consequências da baixa produtividade da agricultura familiar e é num mundo assim que a Via Campesina «busca evitar que todos os jovens abandonem o campo». Uma proposta sinistra.
lygia-pape-1No capitalismo, a elevada produtividade cria as condições da mais-valia relativa e a baixa produtividade impõe a mais-valia absoluta. Nesta situação, a apologia da agricultura familiar não é mais do que um biombo idílico destinado a disfarçar a forma mais brutal de exploração, a mais-valia absoluta.
Poderia ser — embora mais sob o ponto de vista dos ideólogos do que de quem anda com a enxada nas mãos — que, apesar de tudo, valesse a pena trabalhar mais horas porque assim se fugiria aos ditames de um patrão, aplicando, nas palavras de JG, «métodos e práticas gestadas pelos trabalhadores». Mas na agricultura familiar não são as famílias camponesas quem controla o quê e como planta, nem quem controla as extenuantes horas de trabalho que não são contabilizadas como custos, nem quem controla o trabalho infantil e as condições miseráveis de vida. São as oscilações do mercado, que requerem certos produtos mais do que outros e que impõem os preços de venda. Um trabalhador do agronegócio depende das ordens do patrão. Uma família camponesa, por mais agroecológica que seja, depende dos imperativos do mercado. Por isso os jovens rurais têm «como sonho ir viver na cidade», o que significa que têm como sonho fugir da mais-valia absoluta e ser explorados pela mais-valia relativa. Não estão dispostos a servir de cobaias para as doutrinas ecológicas.
«O que se espera do ambientalismo pela esquerda é necessariamente tomar o ponto de vista dos trabalhadores», escreve JG. Mas, curiosamente, logo em seguida ele considera os trabalhadores apenas como consumidores — consumidores negativos, neste caso — ou seja, considera os que sofrem ou eventualmente sofrem a acção exterior de certas empresas, mas não os trabalhadores no interior das empresas. Eu observei num dos comentários a Sociedade urbana e industrial. Uma resposta: «É elucidativo verificar que o movimento ecológico se limita a protestar contra a poluição que as empresas provocam no exterior e esquece as condições sofridas pelos trabalhadores durante o processo de trabalho. […] Os ecologistas, que sistematicamente adoptam a perspectiva do consumidor, pretendem mobilizar populações exteriores às empresas, residentes nas imediações. Se essas pressões tiverem êxito, os custos delas decorrentes serão absorvidos pelo preço de venda do produto; e se este preço ultrapassar um dado nível, ele provocará uma restrição do mercado, reduzindo portanto, ou eliminando, o interesse da empresa por aquele tipo de actividade. Perante este agravamento dos custos exteriores de produção, resta à empresa um único recurso, que é a diminuição dos custos internos de produção, ou seja, o agravamento da exploração da força de trabalho. Mas as boas-almas ecologistas esquecem-se sempre deste aspecto, porque as empresas só as incomodam dos muros para fora e nunca dos muros para dentro».
tadasuke-kuwayama-2No século XVIII difundiu-se uma forma de jardim, que na arquitectura paisagística tem o nome técnico de jardim inglês, e que consistia em aumentar os contrastes e o dramatismo dos maciços de árvores, dos relevos e dos cursos de água, de maneira a tornar a natureza ainda mais natural, ornamentando-a também aqui e acolá com falsas grutas e ruínas apócrifas. Na Inglaterra dessa época, o reverendo William Mason, poeta e amante de jardins, sugeriu aos donos das terras que vestissem de andrajos graciosos os filhos das famílias miseráveis e os deixassem à solta entre as colinas e os riachos, as grutas e as ruínas. E na França burguesa de Bonaparte, o arquitecto Jean-Charles Krafft propôs que um ou outro casal de camponeses idosos, depois de uma vida de labuta ao serviço do proprietário, fossem alojados «numa choupana de estilo polaco», o que não deixaria de embelezar o jardim com mais «um efeito pitoresco» [*]. Os mesmos capitalistas que haviam proletarizado os campos e convertido o artesanato em manufacturas fabris povoavam os seus lazeres com falsas recordações vivas de uma sociedade rural idílica que, se alguma vez houvesse existido, teriam sido eles os primeiros a aniquilar. É o que faz hoje a tecnocracia ecológica, que aprende nos respectivos departamentos universitários a adornar a paisagem rural com famílias de agricultores pitorescos.
O que escrevi aqui e noutros lugares deixa claro que a minha oposição ao movimento ecológico, e neste caso específico à agroecologia, não é parcial mas total. No plano civilizacional sou hostil ao movimento ecológico, porque representa uma ameaça à sociedade urbana e industrial, que pela primeira vez na história oferece à humanidade uma possível libertação do reino da necessidade. No plano intelectual sou hostil ao movimento ecológico, porque volta costas à racionalidade científica e se encerra nos seus próprios artigos de fé. No plano estético sou hostil ao movimento ecológico, porque desde as performances e instalações de Beuys até às criações dos seus epígonos de hoje tem agravado os impasses do conceptualismo. No plano económico sou hostil ao movimento ecológico, porque todas as medidas que propõe levam, directa ou indirectamente, ao agravamento da mais-valia absoluta. No plano político sou hostil ao movimento ecológico, porque implica o policiamento exercido sobre a natureza por uma tecnocracia cooptada.
As ideias e a política da extrema-direita só se tornam realmente ameaçadoras quando começam a penetrar na esquerda; foi o que sucedeu com o fascismo na época entre as duas guerras mundiais. E o charlatanismo só se torna preocupante quando começa a ser adoptado como ideologia em amplos meios sociais; foi o que sucedeu com a eugenia na primeira metade do século XX e com o nacional-socialismo na Alemanha e na Áustria. Ambos estes processos convergiram na ecologia. Num livro publicado há quase trinta e cinco anos eu chamei ao movimento ecológico inimigo oculto, pela sua capacidade de adoptar a linguagem e as maneiras da esquerda para prosseguir um programa de direita. O problema agravou-se ao longo do tempo e, pela difusão capilar que conseguiu e pelo travesti com que se apresenta, o movimento ecológico constitui hoje um dos mais sérios obstáculos nas lutas sociais.
Nota
[*] Citado em Sophie Le Ménahèze, L’Invention du Jardin Romantique, Neuilly-sur-Seine: Spiralinthe, 2001, pág. 458.
tadasuke-kuwayama-1
Ilustrações: de cima para baixo, obras de Hartmut Böhm, Lygia Pape, Lygia Clark, Terry Haggerty, Bridget Riley, Terry Haggerty, Lygia Pape e duas de Tadasuke Kuwayama. A ilustração da janela de destaque é de Julian Stañczak.

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